terça-feira, 6 de abril de 2010

Narciso e Goldmund – Hermann Hesse

As obras de Hermann Hesse são mundos e submundos superpostos nos quais os personagens transitam em busca do fim mais nobre possível para qualquer alma: o autoconhecimento. Desde seus primeiros romances, entre eles o multifacetado “Demian”, Hesse se vê às voltas com questões profundas estimuladas fundamentalmente por sua visão relativista da religião e pelo pensamento de Jung, impetrado em seu subconsciente através de muitas sessões de psicanálise. No universo hessiano o cristianismo e o budismo convivem e sobrevivem em um infindável jogo de afastamento e complementaridade, conceito que embasa a visão holista do autor quanto às inúmeras formas de viver a vida. Nos equilíbrios e desequilíbrios do Yin e Yang, os personagens de Hesse costumam partir para uma longa jornada que culmina com o regresso ao mesmo local, ou à percepção de que o indivíduo é na verdade coletivo e múltiplo. Em Sidarta, a descoberta se dá no final do livro. Em Narciso e Goldmund, essa certeza nasce nas primeiras páginas.
Narciso é um aplicado estudante do convento de Mariabronn, admirado à distância pelos seus colegas e professores. Apresenta desde cedo uma lucidez e compenetração que adiantam um brilhante futuro como abade ou qualquer outro cargo de respeito na hierarquia da Igreja Católica. Goldmund, mais novo, chega ao convento levado por seu pai, que o consagra à vida religiosa para que o filho fuja do destino de sua mãe, personagem de quem pouco se sabe, além da fuga prematura e abandono da família. Da convivência entre Narciso e Goldmund surge então uma amizade sublime e reveladora, que atesta a cada momento as diferenças intransponíveis entre os dois jovens.
Narciso é a encarnação real da fé e da aplicação, do homem que vive para a vida espiritual e o domínio do método. De forma interessante, Hesse plasma nesse personagem a aplicação necessária para o desenvolvimento da doutrina espiritual e do método científica, ressaltando todas as concessões à vida comum que os iniciados nessas disciplinas devem seguir. Goldmund, por sua vez, julgava-se pronto para adentrar a vida no monastério. No entanto, Narciso o faz ver que sua natureza é outra, voltada para a vivência intensa do mundo real. Quando suscita a lembrança secreta da figura da mãe de Goldmund através de um diálogo claramente psicanalítico, Narciso o liberta de suas correntes e o faz ver que seu destino era outro, fora do mosteiro. Goldmund então, após a descoberta do amor carnal em um passeio fora dos muros da instituição, decide fugir e viver seu futuro incerto e excitante.
Após infinitos encontros, felicidades, dissabores e sofrimentos, Goldmund adquire total experiência do que é a vida completamente voltada para a sensualidade. Passa a ser assombrado pela presença da feminilidade, representada por sua mãe e suas amantes, em uma clara referência ao conceito da "Deusa" que está na base da civilização humana. Goldmund decide ser artista e, após conquistar a confiança de um grande mestre, acaba produzindo ele mesmo uma obra prima. Para Hesse, a capacidade de plasmar a realidade em uma obra de arte é sinônimo de um conhecimento sublime e essencialmente diverso daquele praticado por Narciso. E um verdadeiro artista acaba por captar em sua obra não apenas a realidade, mas a alma ou “idéia” de determinado ser ou experiência. Assim, através da arte seria possível atingir o cerne das coisas, da mesma forma que através da religião ou da ciência.
Certamente esse conhecimento não é dado de forma objetiva para Goldmund, que sofre em seu constante vagar pelo mundo, envolvido na nuvem mortal da peste, atormentado por assassinatos que fora obrigado a cometer, deflorando virgens, arrebentando corações de camponesas. A multiplicidade de suas experiências são então confrontadas após o reencontro com Narciso, agora abade, e eterno admirador do corajoso amigo.
Narciso e Goldmund são faces do constante conflito interior de Hesse, que vê a beleza e os defeitos das duas (ou muitas) formas de atingir um envolvimento superior com a realidade. Essa oposição aparece também na obra-prima “O Jogo das Contas de Vidro”. Nesse livro, escrito 13 anos após “Narciso e Goldmund”, Hesse se supera ao colocar esses dois personagens dentro do messiânico José Servo, um mestre no Jogo, na arte e na humildade. A diferença é que neste último livro o autor prefere se libertar das referências ao cristianismo e cria uma instituição também poderosa e secular, na qual Servo chega ao posto máximo.
Em todas suas obras, a intenção de Hesse parece ser criar elementos para uma síntese entre o Ocidente e o Oriente, a religião e a arte, o ascetismo e a sensualidade, a vida e a morte. Através de temas de ubiqüidade assombrosa, Hesse tece sua linguagem de simplicidade comovente e nos envolve até os mais recônditos meandros de nosso subconsciente em sua saga pela unicidade, pela síntese universal.
Narciso e Goldmund estão em eterno diálogo dentro de cada um de nós.