sexta-feira, 26 de março de 2010

Das Profundezas do Baú


Estou de volta com uma nova modalidade desse blog, a crítica musical. É natural que a maior parte das “críticas” acabem sendo sobre os álbuns com os quais tenho mais afinidade. No entanto, pretendo me esforçar para dar minha humilde opinião também sobre lançamentos dos mais variados gêneros musicais.

Os comentários aqui tecidos são as impressões de um apaixonado por música, não da maneira enciclopédica que vem sendo praticada ultimamente, mas também diferente dos colecionadores de vinil e CD´s. Na prática, tenho por volta de uns 30 CDs lá em casa que estão mais para aeroporto de poeira do que outra coisa. Minha coleção toda está em um HD externo que na cotação atual vale algo como uma perna ou um braço esquerdo (Senhor, olhai por meu HD!).  Assim, como usuário de MP3, não fico muito preocupado com a pureza do som que venho ouvindo, mas com o que está sendo tocado. Acho que existe muita paranóia hoje sobre qualidade de reprodução, soterrando o que parece ser mais importante: qualidade musical.

Bom, então aqueçam seus baixadores de Torrent, carreguem o Youtube e vamos lá!


Hawkwind, o Monstro Estelar do Space Rock

Um álbum de inéditas. Um álbum de inéditas extremamente bem tocado. Um álbum de inéditas extremamente bem tocado ao vivo!
Essa é a mágica do  Space Ritual, álbum seminal da banda britânica fundadora do Space Rock, o Hawkwind. Lançado em 1973, esse disco causou furor entre os andróginos de plantão ansiosos por outra experiência equivalente ao “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars”, revolucionário disco de David Bowie. Como na saga de Ziggy, a temática espacial e futurista toma conta do álbum duplo do Hawkwind. As músicas são interpretadas sem interrupções, o final de uma transformando-se gradativamente na introdução da próxima. Bips, ventos estelares e narrações sombrias complementam a experiência complexa dessa verdadeira Space Opera.
As linhas de guitarra viajantes de Dave Brock - o vocalista, guitarristas, compositor e fundador do Hawkwind - tomam conta de cada faixa. No entanto, existe espaço para ousadas linhas de baixo, solos de saxofone, flauta e uma orgia auditiva controlada pelos toscos, porém eficientes, sintetizadores da época. Tudo executado sem pressa, revelando melodias bonitas e profundas.
A aventura começa com a épica “Born To Go”, que define o destino extra-terrestre da humanidade. Para Brock, nós nascemos para ir além desse mundo, embrenhando-nos em um universo mítico e espiritualizado no qual é possível viajar no tempo através das propriedades físicas e multidimensionais da música. A coisa vai esquentando (e se complicando) com a continuidade da estória de um homem que percorre o universo em animação suspensa rumo a um epílogo que poderia ser comparado ao ininteligível final de “2001, uma Odisséia no Espaço”. Algo como ser absorvido por uma inteligência superior, sucintamente.
Em “Lord of  Light” ouve-se o mantra sinfônico do Space Rock, que recicla climas caros ao rock progressivo mas ancorados sobre uma sólida cozinha de baixo e bateria enlouquecedoramente eficientes. Tudo amaciado por longos solos de saxofone, e dá-lhe improviso.
As próximas faixas repetem de forma mais ou menos brilhante essa bem sucedida receita, cada melodia com sua peculiaridade, culminado em “Masters of Universe”. A nave pousa novamente em solo terráqueo.
Ainda estou às voltas com a discografia do Hawkwind, mas esse 5º álbum de estúdio, apesar de fiel ao que a banda vinha produzindo antes, representou uma revolução. A complexidade do que se houve foi ampliada, sem, no entanto, demandar desempenho virtuosíssimo dos músicos. Agora, é curioso que justamente o Hawkwind tenha sido uma das influências da geração punk (!?).  Talvez a temática moderna e a relativa objetividade das bases instrumentais tenham sido um abrigo para aqueles que não suportavam os milhões de notas (e competência) de bandas como o Led Zeppelin e King Crimson. Mas essa é outra estória...



Disco 1:
1."Earth Calling" (Robert Calvert) – 1:46
2. "Born To Go" (Calvert, Dave Brock) – 9:56
3. "Down Through The Night" (Brock) – 6:16
4. "The Awakening" (Calvert) – 1:32
5. "Lord Of Light" (Brock) – 7:21
6. "Black Corridor" (Michael Moorcock) – 1:51
7. "Space Is Deep" (Brock) – 8:13
8. "Electronic No. 1" (Dik Mik Davies, Del Dettmar) – 2:26
9. "Orgone Accumulator" (Calvert,Brock) – 9:59
10. "Upside Down" (Brock) – 2:43
11. "10 Seconds Of Forever" (Calvert) – 2:05
12. "Brainstorm" (Turner) – 9:20

Disco 2:

  1. "7 By 7" (Brock) – 6:13
  2. "Sonic Attack" (Moorcock) – 2:5
  3. "Time We Left This World Today" (Brock) – 5:47
  4. "Master Of The Universe" (Nik Turner, Brock) – 7:37
  5. "'Welcome To The Future" (Calvert) – 2:03

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sexta-feira, 19 de março de 2010

Vigiar e Punir - Michel Foucault


Foucault tem como grande mérito acadêmico ter realizado a historiografia de diversas instituições que são fundamentais para a dinâmica das sociedades atuais. Já abordou de forma exaustiva a sexualidade, a loucura (e os hospícios), os hospitais e, nesse conhecido e controverso trabalho, abordou a questão da punição frente ao sistema penal como conhecemos hoje.
Para tanto, Foucault parte dos suplícios comumente aplicados aos criminosos, citando tenebrosos trechos de sentenças comuns nos séculos XVII e XVIII. Trata-se de decepamentos, perfurações, esquartejamentos e outros mecanismos de punição que buscavam dar o exemplo para a população e mostrando que qualquer crime atingia, em última instância, à figura do soberano. Logicamente, qualquer ataque à figura real deveria ser neutralizado com a máxima brutalidade, de forma a manter inabalada sua onipotência.
Ao longo do tempo, a dinâmica punitiva se altera com base no esfacelamento do poder absolutista, fazendo emergir os aspectos cruéis dos suplícios. Paulatinamente, o crime passa a ser punido com a simples retribuição do ato cometido. Como exemplo, alguém que tivesse esfaqueado um indivíduo deveria ser esfaqueado de forma semelhante pelo carrasco, que não tinha mais o direito de fazer o criminoso sofrer além do que havia sido determinado pelas licenças.
Mesmo essa forma atenuada mas ainda brutal de punição foi somente uma transição para o surgimento da punição através do encarceramento, que a partir de meados do século XVIII veio substituir toda a gama de penas aplicadas anteriormente. A intensidade do crime seria paga à sociedade somente através de um maior ou menor tempo de reclusão, através do estabelecido por uma exaustiva e clara legislação penal. Além disso, o encarceramento passa a admitir o conceito de que o indivíduo deve ser reabilitado e reinserido na sociedade. E tal reinserção só seria possível mediante o trabalho nos presídios, que incutiriam no encarcerado reflexões éticas acerca do valor das formas de produção de bens materiais e conseqüente manutenção da vida humana.
Amparado neste esquema teórico, Foucault mergulha então em temas como a pulverização do poder a partir da necessidade de conhecimento do individuou como célula produtora de valor. Passa a ser necessário conhecer o individuou, não pela importância intrínseca de suas especificidades, mas para entender quais aspectos poderiam torná-lo desviante e diminuir ou impedir sua produtividade. Assim, o indivíduo passa a ser o cerne da reformulação da medicina, do surgimento da psicologia e outras ciências, havendo repercussão direta nos mecanismos punitivos.
Adicionalmente, Foucault faz uma leitura do surgimento e aplicabilidade dos conceitos de vigilância total, materializados no Panóptico de Bentham. Esse mecanismo permitiria vigiar qualquer atividade (escolas, hospitais, hospícios, presídios e mesmo fábricas) de forma que os indivíduos estivessem isolados e o vigilante não fosse conhecido. A atividade de vigilância partiria de uma estrutura central fechada, distribuindo-se os observados em células incomunicáveis dispostas ao redor do centro. Assim obtém-se o máximo sucesso quanto à vigilância e, conseqüentemente, a produtividade, amparada na incerteza do olhar ou mesmo da existência do observador.
Esse livro foi alvo de diversas críticas, muitas vezes caricaturais, calcadas nas impressões reformistas e relativistas dos chamados “foucaultianos”. No entanto, trata-se de uma reflexão moderna e bem embasada deste problema fulcral que é a necessidade de resposta às ações tidas como negativas para a coletividade de forma a não violar a própria essência do que é ser “humano”. 


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segunda-feira, 15 de março de 2010

Caim – José Saramago

A velha e boa irreverência de nosso mais cáustico gajo. Neste livro “curto e grosso”, Saramago parece querer botar no papel aquela série de observações que qualquer leitor da Bíblia Sagrada um dia já se colocou: se deus é onipotente e onipresente, porque deixa que coisas ruins aconteçam? Porque os súditos do senhor tiveram que cometer algumas atrocidades para a maior glória do todo poderoso? Porque o deus do Antigo Testamento, certas vezes, parece agir motivado pelos mesmos infortúnios dos humanos, apresentando ira, ciúmes e vaidade? E, afinal de contas, o que aconteceu com Caim após ter sido amaldiçoado pela morte de Abel?
Passando de maneira vertiginosa por alguns dos episódios mais famosinhos da Bíblia, Saramago insere seu atormentado e revolucionário personagem em situações tensas e, miraculosamente, engraçadas. Ao longo de sua jornada, Caim acumula provas de que os caprichos divinos não passam mesmo de brincadeiras de mau gosto com nossa miserável raça de títeres de carne e osso.
Mais uma vez, o português iconoclasta despeja sua ira sobre episódios obscuros da saga do deus judeu/cristão/islâmico, que age sempre em seu próprio benefício e para promover sabe-se lá qual plano superior. Mais direto e menos alegórico que o “Evangelho segundo Jesus Cristo”, apresenta ainda a característica acidez e a forma inovadora de encadear as frases de seus romances anteriores.


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Trem noturno para Lisboa – Pascal Mercier


Solidão. Solidão intelectual, solidão causada pela rotina, solidão pela ausência do amor romântico. Solidão pela ausência de familiares, solidão no sentido clássico. Essa é a realidade de Gregorius, o personagem sempre em construção do excelente romance de Pascal Mercier.
Após salvar do suicídio uma mulher portuguesa, esse professor suíço de grego antigo (e outras línguas mortas) passa a refletir sobre sua vida e se apaixona perdidamente pelo idioma lisboeta. Em um sebo perdido na urbanidade macilenta de Berna, encontra um livro de pensamentos escrito por um médico português que o leva a abandonar uma de suas aulas no meio e fugir para Lisboa em busca de mais informações. Ao pegar o trem noturno que dá nome ao livro, Gregorius pensa deixar para trás o professor ensimesmado e deprimido, mas percebe que sua viagem é na verdade uma saga rumo ao autoconhecimento. Na medida em que conhece pessoas envolvidas com o médico, percebe que viver é um eterno exercício de enredamento entre o novo, a novidade, e o “eu” que ele havia construído durante toda a vida. E vê em cada experiência do médico português uma saída para a mesmice e a solidão.
Só para constar, o livro vendeu como pão quente em toda a Europa (o que não é muito, visto que o Paulo Coelho é best-seller na França) e originou a expressão idiomática “pegar o trem noturno para Lisboa”, que significa simplesmente “mudar de vida”.
Para os dias de chuva, as longas viagens e os momentos de ruminação introspectiva.


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Victor Hugo: Eu sou uma força que avança! (volume I) e Este um sou eu! (Volume II) – Max Gallo

Ler os clássicos. Eterno compromisso que muitos assumem, alguns desenvolvem e poucos cumprem. Após algum sucesso, compromisso posterior: conhecer a vida dos que escreveram os clássicos. Sempre achei que, para entender realmente qualquer texto, é fundamental saber o que se passava na vida de quem o escreveu, já que tudo é escrito por um sujeito e esse sujeito, para complicar, é dinâmico. Mas essa questão se colocou mais fortemente para mim após a leitura do colossal Os Miseráveis.
Quem seria esse homem que se dispôs a escrever tamanho monolito. Como, em nome de Alá, alguém consegue entremear de forma tão genial e caprichosa a vida em construção de dezenas de personagens absolutamente marcantes? Em que circunstâncias um ser humano consegue embaralhar política, filosofia, história, filologia, teologia, teoria militar, lingüística e ficção em uma mesma obra?
Victor Hugo, como a bela e detalhada biografia do historiador francês Max Gallo oportunamente porta como titulo de seu volume I, era uma força que avançava. O cuidado com as nuances de diversos aspectos da vida desse escritor é uma característica louvável das obras de Max Gallo, membro da Academia Francesa de Letras, que já biografou Charles DeGaulle e Napoleão.
O texto avança, ano a ano, sobre a efervescência de uma alma em crescimento. Uma criança fugidia e apaixonada, ainda tão jovem. Um adolescente perturbado pela separação dos pais, na época, pouco comum. Os primeiros escritos, em competição com o irmão que viria a enlouquecer. O primeiro prêmio, ainda com quinze anos. O casamento, a fama, o reconhecimento dos reis. De ultra-monarquista a Patrono da República, o que importava a Victor Hugo era, além da vaidade que acompanha alguns gênios, a divulgação da verdade e da liberdade de expressão, bandeira que por si só já o conduziria para o Pantheón. Mas, acima de tudo, Hugo tinha um compromisso inexaurível com a literatura. Seus romances, peças teatrais e poemas dão vazão à avalanche de seu pensamento multifacetado e secular.
Na velhice, Hugo aparece na biografia de Gallo como um “velho safado”, digno de um conto do Bukowiski. Sua ânsia por viver é tão grande que ele consola sua velhice no leito de infinitas damas da sociedade, criadas, prostitutas e sua eterna e inseparável amante.

Hugo cumpre aquilo tudo que é reservado a cada um de nós, vivendo a intensidade da vida, lutando pelo que achava correto, amando, chorando seus mortos. Mesmo do auto de sua genialidade, suas realizações parecem estranhamento próximas e motivadoras, levando-nos a crer que uma grande alma não se compõe somente de ineditismos, mas da vivência intensa e incansável da profusão de experiências que é a própria vida.


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Gênesis - Robert Crumb

Pensem comigo em uma bem difundida passagem bíblica: a serpente convence Eva a comer o pomo da Árvore do Bem e do Mal. Deus fica sabendo (quem dedurou?) e aparece em meio a sua fúria lá pelas bandas do Jardim do Édem. Passa um sabão em nossos incautos ancestrais, vira-se para a serpente e esbraveja: “Você serpente, devido à incorreção de seus atos, será condenada a rastejar eternamente!”. Até aí tudo bem, todo mundo sabe. Mas espere aí! Se a serpente só foi condenada a rastejar após ter dado aquela dica alimentar para Eva (An apple a day keeps the doctor away!), como era então, à época, a anatomia do maldito ofídio? Explicação de Mr. Crumb: ele tinha pernas, ora!
Robert Crumb, o mítico ilustrador novaiorquino, dá vida a episódios da bíblia sagrada desde o Gênesis até a passagem que trata de José no Egito. Seus traços meticulosos e arredondados dão rosto a centenas de personagens veneráveis como Abraão, Isaac, Noé, Sara e Rebeca. A idéia era manter o texto original como consta na bíblia, apenas fazendo alterações de modo a resumir algumas passagens. Ao final, aí sim observações interessantes do autor, como as considerações sobre as origens da sociedade judaica e os resquícios de uma organização matriarcal, cuidadosamente apagada dos textos posteriores por sacerdotes picaretas.

E tem mais: já imaginou Adão e Eva praticando o mais antigo dos esportes? Abraão e Sara dando umazinha? Isaac e Rebeca mandando ver? Lot traçando suas duas filhas? Tudo isso você encontra na obra de Crumb que, mesmo tratando de assunto sério de forma séria, encontra espaço para naturalizar e interpretar os textos “sagrados” com uma liberdade artística invejável.




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